28 de abril de 2022

Se precisa cavar pra entrar, também precisa cavar pra sair

Você já estudou em uma sala de aula onde alguém era pego pra ser zoado por todos e acontecia aquele efeito manada? Lembra qual o sentimento de olhar aquilo acontecendo? 

Muita gente me parabeniza pela transição. 

"Precisa de muita coragem" - dizem. Eu não discordo, mas...
Sinto que as vezes as pessoas não entendem que o processo, até "chegar na transição", até que vira algo externo, pra fora, é algo que cresce barulhento e se desenvolve dentro da gente. Muitas vezes de forma bem dolorosa, já que dificilmente a gente (e aí eu falo de todas as pessoas) tem muita noção de que precisa de ajuda pra entender e aprender a lidar com as coisas.

O que eu geralmente escuto:

Você foi muito corajoso
Você está muito mais feliz agora
Você era uma pessoa triste
Você está leve agora (adoro essa)
Você finalmente está desabrochando
Você é uma pessoa incrível que eu nem sabia que existia
Entre tantas outras coisas.....

E parece que as pessoas simplesmente esperam que você ouça tudo isso desassociando de que estão falando de você!  Não percebem que tão falando que você não tinha coragem, ressaltam o quanto você era uma pessoa triste (mesmo se esforçando pra caralho pra não ser), que você pesava nas suas relações (mesmo quando tentava MUITO não fazer isso), enfim... que você passou anos da sua vida "não sendo". Que só agora você tá florescendo e que passou 34 anos como uma semente sendo regada (por eles) todos os dias sem dar nem sinal de vida. E eu poderia apostar que se tentasse falar isso dessa forma pra alguém, ainda escutaria um "imagina, eu nem tô falando isso, você tá entendendo errado, é que eu tô muito feliz por você, não faz disso um peso." E aí a gente volta pra um lugar onde acabaram de dizer que era muito pior do que o que você está hoje e que é você quem está fazendo isso (de novo). 

"Desapega desse passado, ou se não conseguir desapegar, só não deixa isso atrapalhar." Em qualquer contexto isso é meio esquisito, né?

Pensa: "Seu cachorrinho de 13 anos morreu hoje, eu sei que é foda desapegar assim e tudo bem, mas só não traz isso pra cá não, tá? senão vai ficar pesado e atrapalhar".

De qualquer forma, acredito muito que tive coragem sim ao viver a vida mesmo sem me identificar com quem eu era. Acho que fui bem corajoso ao enfrentar todas as outras coisas que nem eram sobre minhas questões de gênero e que por si só ja demandavam bastante. Acho que eu fui o mais feliz que eu conseguia ser com tudo o que tava sendo dado pra mim, o mais leve também. Mas principalmente, eu sempre existi, sabe?  Apagar a minha existência ou tentar fazer com que eu faça isso me machuca, porque invalida uma luta bizarra que foi até chegar nessa "flor desabrochando" de agora. E posso falar? Mesmo com todas as dificuldades do mundo, ainda acho mais fácil e que preciso de menos coragem pra ser e fazer as coisas hoje do que eu precisei antes. Então não me sinto confortável quando escuto sobre isso, como se estivéssemos falando de um aluno sendo criticado por toda a sala de aula, pelas costas! 

Você lembra como era quando acontecia isso na escola, no trabalho, nas amizades? Você já foi o alvo? E se, assim como em um filme da Sessão da Tarde, você se dividisse em dois e pudesse ir praquela sala de aula pra ver tudo isso de fora acontecendo com você mesmo? Você não ia querer fazer alguma coisa, nem que fosse defender/acolher ou não concordar? 

Eu precisaria me odiar muito pra não fazer nada. E talvez naquela época eu me odiasse mesmo e até criticaria junto, mas hoje? Não. 

Então não adianta me pedir pra que eu entre nesse movimento de dedo na cara, sabe? Porque não querer fazer isso não é apego, não é prisão. É cuidado e acolhimento e isso nunca vai me impedir de ser quem eu sou hoje, não. Aliás, acolher (a mim e as necessidades/processos dos outros) faz parte de quem eu me tornei e é uma das minhas principais mudanças (e uma das que mais me orgulho, honestamente falando).

E da mesma forma que ao comparar a existência das pessoas a gente acaba sendo injusto e cruel, será que um dia vão conseguir entender que é tão ruim ou até pior (já que somos seres bem mais duros com nós mesmos) me comparar com quem eu fui no passado? É cruel principalmente quando comparam com uma versão sua que tava sufocada, perdida, que não conseguia se amar por não conseguir se enxergar e nem sabia disso direito, que não tinha nem as ferramentas pra poder fazer alguma coisa quanto a isso e que mesmo assim estava dando tudo o que tinha, mesmo que sobrasse pouco no final, pra ser a melhor pessoa que conseguia ser. Eu dei tudo de mim por quem eu amo, sabe? Mesmo que me sobrasse pouco. Era realmente tudo o que eu tinha. Afinal, a gente dá o que consegue, né? 

Eu não acho que é solução, pra mim, pensar em tudo isso como pessoas tão distintas assim. Mesmo porque é esquisito imaginar nascendo com 34 anos de idade. E também porque independente de quem eu vá escolher como melhor versão nessa "brincadeira" toda, invariavelmente vou acabar me atacando. E a nossa meta é aprender a não fazer mais isso, né? Se escolher em todos os momentos (e esse pensamento aqui eu sei que tá claro).




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